
Em abril de 2024, estudantes escreveram ofensa de cunho racista no caderno da filha da atriz. A defesa das adolescentes entrou com recurso por entender que o caso foi apenas uma injúria. Agora, o processo tramita em 2ª instância. A atriz Samara Felippo e as duas filhas, fruto da relação com o jogador de basquete Leandrinho
Reprodução/Instagram
A Justiça de São Paulo decidiu que as duas alunas que escreveram uma ofensa de cunho racista no caderno da filha da atriz Samara Felippo terão de prestar serviços comunitários por quatro meses, sendo seis horas semanais.
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O episódio ocorreu na escola de alto padrão Vera Cruz, na Zona Oeste de São Paulo, em abril de 2024. Na época, as estudantes do 9° ano pegaram o caderno da filha de Samara escondido para copiar uma pesquisa, sem autorização. Após o plágio, elas arrancaram as páginas, ainda escreveram “cu preto” e desenharam um coração com caneta vermelha (leia mais abaixo).
A sentença da 2ª Vara Especial da Infância e da Juventude — que definiu a aplicação da medida socioeducativa por ato infracional análogo à injúria racial — é de dezembro do ano passado.
Contudo, a defesa das estudantes alegou que a frase escrita no caderno não tinha viés racial e entrou com recurso em janeiro para solicitar a alteração do ato infracional somente para injúria. Agora, o processo tramita em 2ª instância e em segredo de Justiça.
Ao g1, Samara Felippo disse que o crime de racismo foi relativizado e classificado como “brincadeira de criança” durante a primeira audiência, quando os pais de ambas as partes foram ouvidos. A atriz também disse que foi pressionada a aceitar a Justiça Restaurativa.
“Eu fiquei incrédula em relação a como foram tomadas as decisões, como eu me senti coagida e desrespeitada nas audiências, como foi levado de uma forma a relativizar o assunto, chamando até de ‘bobagem’. Meus advogados não puderam participar [das audiências]”, contou Samara.
Segundo a artista, a audiência aconteceu no dia do aniversário de sua filha, quando precisou vê-la chorar e “revisitar toda a dor que ela passou”.
Apesar de o resultado judicial não ser o esperado, Samara reforça a importância do registro da denúncia em casos de racismo como o sofrido pela filha.
“A importância da denúncia é extrema, fazer o boletim de ocorrência pelas leis legais, porque o racismo precisa ser levado a sério e considerado crime neste país. Se elas são adolescentes, que sejam infratoras, e que tenham sanções adequadas, para que [isso] afete não só a minha filha ou a mim, mas toda uma sociedade”, explica.
Nas redes sociais, nesta quinta-feira (17), a atriz também compartilhou sua indignação com o processo judicial: “Eu ainda estou nessa luta e não só pela minha filha, mas pelos inúmeros casos de racismo que continuam e continuam acontecendo recorrentemente com adolescentes e crianças nas escolas”.
Samara Felippo denuncia racismo contra filha
Reprodução/Redes sociais
No final do ano letivo, Samara também decidiu tirar a filha do colégio Vera Cruz pela falta de posicionamento antirracista da instituição, já que as agressoras saíram da escola de forma voluntária. A garota também passou a fazer terapia para encarar o trauma que sofreu.
A instituição informou em nota enviada ao g1, na época, que iniciou, em 2019, um projeto para as relações étnico-raciais, com ações no ambiente escolar de enfrentamento ao racismo estrutural. (Leia na íntegra abaixo.)
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A atriz Samara Felippo e as duas filhas
Reprodução/Instagram
Relembre o caso
Era uma segunda-feira quando a filha de Samara, na época com 14 anos, foi vítima de racismo no Vera Cruz — uma das escolas mais tradicionais e caras da capital paulista. A mensalidade custa cerca de R$ 4.928,00 por mês para alunos do 9° ano e R$ 5.344,00 para estudantes do ensino médio.
Segundo a atriz e o colégio, as duas alunas pegaram um caderno da garota, que é negra, arrancaram as folhas e escreveram uma ofensa de cunho racial em uma das páginas. Na sequência, o caderno foi deixado nos achados e perdidos.
“Todas as páginas, de um trabalho de pesquisa, elaborado, caprichado, valendo nota, feito por ela, foram arrancadas violentamente e dentro do caderno havia a frase [racista]. O caderno já está em minhas mãos e um novo caderno já foi dado a minha filha”, relatou Samara em uma carta a um grupo de pais da escola.
“Ainda estou digerindo tudo e talvez nunca consiga, cada vez que olho o caderno dela ou vejo ela debruçada sobre a mesa refazendo cada página dói na alma. Choro. É um choro muito doído. Mas agora estou chorando de indignação também”, disse na época.
Episódios anteriores
Samara ainda disse que a filha já havia passado por episódios de preconceito anteriores, mas que só agora o “racismo se materializou”.
“Antes, ela queria não enxergar. Doía ver, só queria fazer parte de uma turma e era excluída de trabalhos, grupos, passeios, aceitava qualquer migalha e deboche feito pelas mesmas garotas, e seu nome sempre era jogado em fofocas, ‘disse me disse’ e culpada por atos que não cometia. Lembrando do caso do carregador que sumiu numa festa e a única acusada foi ela. [Não atribuo aqui esse caso as atuais agressora].”
A atriz afirma querer levantar um debate sobre o que uma escola precisa fazer para ser considerada antirracista – como se coloca o Vera Cruz.
“Tem algumas coisas na escola que eu não concordo. A política de cotas que eles adotam vai só até o quinto ano. Então, um adolescente negro que vai para a escola no sétimo, no oitavo, no nono ano, não vai se sentir representado, vai ser um ambiente hostil, majoritariamente branco. Eu quero levantar um debate assim: o que é uma escola antirracista de qualidade?”
“Porque essas meninas [que agrediram a filha da atriz] estudam desde sempre no Vera [Cruz], e cometem um tipo de ato como esse. Então, não está fazendo efeito, você não está fazendo efeito (…) Tem que refazer, tem que repensar, tem que fazer mais.”
O que disse a Escola Vera Cruz
“No início desta semana, tomamos conhecimento de uma grave agressão racista entre alunos do 9º ano. Um caderno de uma aluna negra foi roubado, teve folhas arrancadas, uma ofensa de cunho racial altamente ofensiva foi escrita numa das páginas. Desde o primeiro momento, reconhecemos a gravidade deste ato violento de racismo, nomeando-o como tal, e imediatamente foram realizadas ações de acolhimento ao aluno agredido e sua família. Desde então, viemos trabalhando cuidadosamente sobre esse caso e nos comunicando muito intensamente com as famílias de todos os alunos envolvidos.
No dia seguinte, os agressores se identificaram e se apresentaram à Escola, com suas famílias, e diversas medidas foram tomadas, sempre no sentido de acolher o aluno vítima da agressão e sua família, bem como no sentido de garantir que os alunos agressores entendessem a dimensão de seu ato. Depois de amplo e intenso processo de apuração, foi possível promover um encontro entre os três alunos envolvidos, com mediação da escola.
Em seguida, os agressores foram informados das sanções definidas inicialmente, dentre elas, uma suspensão por tempo indeterminado, e proibição da participação no Estudo do Meio na Serra da Canastra. Novas sanções poderão ser adotadas, conforme apuração e reflexão sobre os fatos. É importante sublinhar que as alunas não reincidiram em agressões racistas; a Escola não tem conhecimento de qualquer outra atitude racista de ambas as alunas.
As ações punitivas foram determinadas conforme regras e procedimentos institucionais, que levam em consideração os sentidos das punições no ambiente escolar. As sanções foram definidas pelas equipes da Escola, considerando a gravidade das ofensas. Ações de reparação ainda serão definidas.
Em 2019, a Escola Vera Cruz iniciou um Projeto para as Relações Étnico-Raciais, com ações no ambiente escolar de enfrentamento ao racismo estrutural: olhar sobre o currículo escolar, formação continuada, ampliação da diversidade racial entre alunos, professores e gestores, dentre outras. Ficou evidente a importância da ampliação do letramento racial, do não silenciamento de manifestações racistas, do pronto e amplo amparo às vítimas de eventuais agressões racistas e do encaminhamento adequado de ações de sanção e reparação nestes casos. Entendemos que um projeto de educação para as relações raciais é um projeto de transformação dos alunos. Sua construção se dá pelo enfrentamento direto e pelas ações educativa, mais do que pelo entendimento de que o isolamento e expulsão dos alunos que cometeram atos racistas seriam a única medida cabível. O que almejamos é a constituição de um ambiente, para alunos, familiares e profissionais, de promoção da diversidade e do respeito mútuo, um ambiente onde todas as pessoas se sintam respeitadas e valorizadas independentemente da sua raça, etnia, religião, condição social, deficiência etc”.
Não existe “advogado de acusação”, como ocorre no processo penal comum de adultos.
O papel de “acusação” é exercido pelo Ministério Público.
A vítima ou seus representantes podem ser ouvidos, mas não atuam como parte acusadora com advogado próprio no processo.