
Na última semana, a Assembleia Legislativa do Ceará reconheceu o pão de coco como um “bem de destacada relevância histórica e cultural do Estado do Ceará”. Como o pão de coco se tornou uma tradição de Páscoa no Ceará
É uma mistura de fé, sabor e tradição. Ao longo do ano, é possível encontrá-lo nas padarias e nos supermercados, mas quando chega a Páscoa, é quase impossível desviar dele – se você mora no Ceará. Estamos falando do pão de coco, uma iguaria tradicional do estado amplamente consumida no período da Semana Santa.
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O pão de coco é semelhante ao chamado pão de massa fina – conhecido no Ceará como ‘sovadinho’ -, mas sua massa é mais adocicada e, como o nome entrega, leva coco ralado. Em algumas variações, é polvilhado com coco queimado ou mel.
Ele é tão popular no Ceará que, na última semana, a Assembleia Legislativa (Alece) aprovou uma requisição reconhecendo o pão de coco como um “bem de destacada relevância histórica e cultural do Estado do Ceará”. O reconhecimento foi sancionado pelo governador do estado, Elmano de Freitas, na quarta-feira (16).
“O pão de coco transcende a culinária e se firma como um elo entre gerações, presente em momentos afetivos, celebrações populares, cafés em família e lanches à beira-mar. Está incorporado às tradições do nosso povo, evocando memórias afetivas e reforçando laços culturais, tanto no litoral quanto no interior do Estado”, afirmou o deputado Romeu Aldigueri (PDT), presidente da Assembleia, que propôs a medida.
Pão de coco foi reconhecido como bem de relevância histórica e cultural para o Ceará
Davi Rocha/SVM
Ao g1, o presidente do Sindicato das Indústrias de Panificação e Confeitaria do Ceará (Sindpan), Alex Martins, afirmou que, no período da quaresma, a procura pelo pão aumenta até 500%. Neste ano, o setor espera vender mais de 3,3 milhões de unidades de pão de coco.
“Só aqui no estado do Ceará se fabrica o pão de coco, o verdadeiro pão de coco”, afirma Alex Martins. “Nesse momento de quaresma é onde realmente se dá a cultura do cearense de comprar o pão de coco. Ele vira presente na mão dos cearenses, que compram muitos pães e dão de presente aos seus entes queridos, parentes, amigos, colegas”
Apesar de ser muito popular no Ceará, o pão de coco não é facilmente encontrado – ou não faz parte da tradição de Páscoa – em outros estados do Brasil, o que faz a iguaria ser considerada uma tradição e um sabor tipicamente cearense.
🤔🥖 Afinal, de onde vem o pão de coco?
É difícil rastrear a origem exata da receita do pão de coco. Não há relatos específicos sobre a iguaria em livros de história, de acordo com a professora de gastronomia e pesquisadora de alimentos tradicionais, Uiara Martins.
“Se você perguntar hoje para uma pessoa que tem 100 anos, no Ceará, ela já vai dizer que existia, porque é uma tradição bem antiga. A gente não tem documentado em livro, em registro, assim, ‘ah, é a origem do pão de coco’. Mas tem algumas coisas que vão dando apontamentos”, aponta a professora.
Pão de coco é reconhecido como patrimônio histórico, cultural e imaterial no Ceará
Agência Diário
As pistas para a origem do pão de coco podem ser encontradas no processo de colonização. Não é raro encontrar, nos países cristãos, receitas especiais feitas no período da Páscoa. O pão guarda o simbolismo religioso da partilha, da comunhão e última ceia de Cristo.
Em Portugal, que colonizou o Brasil, uma das receitas tradicionais da festa de Páscoa é justamente um tipo de pão – o folar de páscoa. Na Itália, por exemplo, há o pão conhecido como colomba pascal. Práticas semelhantes podem ser encontradas na Alemanha (o österbrot) e na Ucrânia (o paska).
📍Portanto, uma teoria é que, em determinado momento da história, durante o processo de colonização brasileira, houve a criação de uma receita de um pão especial no Ceará para celebrar a Páscoa. E o coco foi parar nela devido à sua abundância no estado e seus diversos usos na cozinha.
“A gente não tem essa origem demarcada, o que a gente tem é essa relação muito forte com a influência portuguesa da produção de pães, que é de onde a gente adquire toda essa expertise; a gente tem essa relação com o simbolismo da igreja católica, da divisão do pão; e a gente tem essa influência do coco, que é um alimento tradicional do território cearense, do litoral cearense. É natural que ele vá aparecer numa preparação dessa de grande importância, porque tem uma relação com a comunidade”
🥥 O papel do coco na cozinha
O coqueiro e seu fruto, o coco, é facilmente encontrado por todo o litoral do Ceará e pode ser visto em diversas preparações, sejam doces ou salgadas. O uso do coco na culinária, é claro, não é uma peculiaridade da cozinha cearense.
No século XV, por exemplo, religiosos portugueses relatavam o uso de leite de coco para preparar alimentos em algumas regiões do continente africano, e o arroz-de-coco, especificamente, era considerado um prato para ocasiões especiais.
Já no Brasil colonial, o historiador Câmara Cascudo relata que os colonizadores estimularam o plantio dos coqueiros no litoral. O leite de coco, feito a partir da fruta, estava associado às áreas urbanas, às cidades litorâneas, nas imediações de coqueirais, mas era pouco comum no interior.
O coco não era encontrado em todo o litoral brasileiro, mas passou a ser plantado pelos portugueses
Davi Rocha/SVM
Comer o miolo do coco e beber a água do fruto era comum entre a população escravizada, de acordo com Cascudo. Com o tempo, se tornaram comuns os preparos de peixe e moqueca com coco, bem como doces. E a população do litoral que se mudava para o interior lá mandava plantar coqueiros.
Algumas receitas portuguesas foram adaptadas e o coco serviu como substituto de frutas secas. Em Portugal, o quindim é feito com amêndoas; no Brasil, com coco.
No passado mais recente, de acordo com a pesquisadora Uiara Martins, em cenários de escassez de alimentos, o coco era utilizado para uma espécie de substituto para verduras e outros elementos, ficando com a função de dar sabor à comida.
“A fruta tem esse perfil de ser gordurosa. Do próprio coco se tira óleo dele. Se você torrar um coco, você vai ver ele levantar sabor. Na gastronomia, a gente sabe que gordura é bom porque é a gordura que dá sabor, certo? E o coco, ele tem esse contexto, ele entra nas preparações. Quando você bota o leite de coco numa preparação, o que ele faz? Ele levanta sabor. E ele faz isso por quê? Por causa da gordura que ele tem”, detalha Uaiara Martins.
Hoje, o Ceará é o maior produtor de coco do Brasil, de acordo com a pesquisa Produção Agrícola Municipal de 2023 (PAM), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Sozinha, a cidade de Paraipaba, na Grande Fortaleza, produziu 171 milhões de unidades de coco em 2023, se tornando a maior produtora do fruto no país.
Aprenda a fazer um delicioso pão de coco;
O pão, o coco e o fartes 😋
A hipótese do pão de coco como uma herança da panificação portuguesa, adaptada a ingredientes facilmente encontrados aqui no território brasileiro, não seria uma história exclusiva dessa iguaria tipicamente cearense.
Na cidade de Sobral, na região norte do Ceará, até hoje é possível encontrar quem faça o doce fartes. Ele é considerado o primeiro doce a desembarcar no território brasileiro – ele aparece na carta de Pero Vaz de Caminha, o primeiro documento escrito no Brasil.
No texto, Caminha conta que o fartes foi oferecido aos povos indígenas nos primeiros contatos com os portugueses – e não foi muito bem recebido. A receita, de todo modo, fez parte da tradição culinária lusitana que marcou o Brasil colonial, mas hoje é pouco conhecida no país.
Doce fartes é uma receita portuguesa, preservada no Ceará, e que também ganhou coco em sua composição
Marcelino Júnior
Em sua receita, a massa do fartes é semelhante à do pastel: leva farinha de trigo, ovos, manteiga, sal e água. Já o recheio é uma miscelânea de sabores: leva açúcar, amêndoas e especiarias como cravo da índia ou gengibre.
No Ceará, o fartes recebeu alguns ingredientes locais, como a castanha de caju, a farinha de mandioca e, claro, a receita, assim como o pão, passou a levar coco.
A preservação da receita rendeu à doceira cearense Rita de Cássia o título de mestra da cultura popular do Ceará. Ela produzia o fartes desde 1958 e dizia ter herdado a receita da sua madrinha, a doceira Semírames, que viveu até os 100 anos. Rita de Cássia faleceu em setembro de 2024, aos 90 anos.
Embora sua receita tenha sido preservada em Sobral e nas redondezas, a tradição do fartes desapareceu de boa parte do território, um caminho diferente do pão do coco, que se tornou tão popular que começou a ser feito não só no período de Páscoa, mas no ano todo.
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