Cartas secretas, prisão e Chico Buarque: os bastidores da aproximação entre o papa Francisco e Lula


Aproximação entre Lula e o papa envolveu reuniões no Vaticano, delicadas costuras diplomáticas, toques de filmes de espionagem e contou até com a participação do compositor Chico Buarque. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) estava preso havia pouco mais de um ano quando, em maio de 2019, veio à tona uma carta enviada a ele pelo papa Francisco, morto na última segunda-feira (21).
A carta era uma resposta do papa a uma mensagem enviada por Lula cerca de um mês antes, em que então ex-presidente, preso por acusações posteriormente anuladas de corrupção e lavagem de dinheiro, agradecia ao papa pelo seu apoio “ao povo brasileiro pela justiça e pela defesa do direito dos pobres”.
Mas, mais que uma simples troca de mensagens entre líderes, as missivas foram o ápice de um processo de aproximação entre Lula e o papa que se iniciou meses antes e que envolveu reuniões no Vaticano, delicadas costuras diplomáticas, toques de filmes de espionagem e que contou até com a participação do compositor Chico Buarque.
O papa Francisco e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se abraçam durante encontro no Vaticano no dia 23 de junho de 2023
Ricardo Stuckert/Presidência da República
Na carta que o papa Francisco enviou a Lula, datada de 3 de maio de 2019, o pontífice menciona “as duras provas” que o então ex-presidente vivia, “especialmente a perda de alguns entes queridos”.
Ele então cita nominalmente a ex-primeira-dama Marisa Letícia (morta em 2017), o irmão Genival Inácio (morto em janeiro de 2019) e Arthur, neto de Lula que havia morrido em 1º de março daquele ano, aos 7 anos de idade.
“Quero manifestar-lhe minha proximidade espiritual e lhe encorajar pedindo para não desanimar e continuar acreditando em Deus”, escreveu o pontífice.
Embora não tivesse conteúdo político, a carta do papa gerou críticas de bolsonaristas à época, apesar de o então presidente Jair Bolsonaro (PL) não ter se manifestado sobre ela.
Na então rede social Twitter, o escritor Olavo de Carvalho (morto em 2022) chamou a missiva de “cartinha” que tinha “autoridade zero” sobre os fiéis e que expressava apenas a “opinião de um argentino”.
Basílica recebe último dia de velório do papa Francisco
Campanha internacional
Logo depois da prisão de Lula pela Operação Lava Jato, em 7 de abril de 2018, apoiadores iniciaram uma campanha para denunciar o que viam como irregularidades nos processos judiciais que pesavam contra ele.
Eles também protestavam contra o que viam como um tentativa de impedir que Lula fosse candidato nas eleições presidenciais de 2018, quando Bolsonaro acabaria derrotando Fernando Haddad depois de a candidatura de Lula ter sido impugnada com base na Lei da Ficha Limpa.
Parte desta campanha foi feita no exterior.
Em julho de 2018, como parte de um evento organizado pela Via Campesina, movimento internacional de camponeses, uma comitiva formada pela jurista Carol Proner, o sociólogo e diplomata Paulo Sérgio Pinheiro, a pastora luterana Cibele Kuss e a advogada Marinete Silva, mãe de Marielle Franco, foi recebida pelo papa em uma audiência na Casa Santa Marta, residência oficial do pontífice, no Vaticano.
“Cada um tinha uma espécie de missão, de apresentar algumas das crises do Brasil”, diz Proner, que levou ao papa documentos sobre o que é conhecido como lawfare, ou o uso de manobras jurídicas para fins políticos. Os apoiadores de Lula argumentam que sua prisão teria sido fruto desta prática.
Antes disso, o embaixador Celso Amorim, atual assessor especial da Presidência, também havia tido uma audiência com o papa em que ele discutiu o caso de Lula com o pontífice.
“Nós tínhamos uma denúncia sobre setores da Justiça brasileira”, diz Proner, que entregou ao papa o livro Comentários a uma Sentença Anunciada, que traz críticas de juristas sobre os processos contra Lula e que foi organizado por ela.
Chico Buarque
Meses depois, em novembro, uma nova comitiva foi recebida pelo papa em sua residência oficial. Desta vez, Proner estava acompanhada do marido, o compositor Chico Buarque.
“Eu brinco que o Chico já estava formado em Direito Penal, ele já sabia tudo de Lava Jato”, diz Proner à BBC News Brasil. A comitiva era formada também por uma jurista italiana e dois advogados argentinos, entre eles Juan Grabois, que atua junto aos movimentos sociais na Argentina e era uma figura bem próxima ao papa.
Chico Buarque em imagem da série ‘Na trilha do som’
Reprodução / Vídeo
O encontro ocorreu às 7h da manhã, e o grupo entregou ao papa 500 páginas de documentos que indicavam o que eles viam como prática do lawfare não só no Brasil, mas também na Argentina, Equador e outros países latino-americanos.
“O papa ficou muito impressionado. Ele disse ‘isso é muito perigoso’, daquele jeito dele, um pouco simpático, um pouco argentino, um pouco impressionado”, afirma Proner.
De fato, a estratégia parece ter surtido efeito. Anos depois, em abril de 2023, o pontífice deu uma entrevista a um canal de televisão argentino em que citou o termo lawfare para criticar a condenação de Lula.
A reunião no Vaticano ficou registrada em uma foto tirada pelo argentino Juan Grabois, embora ela não estivesse na agenda oficial do pontífice.
“O Chico [Buarque] estava fascinado, mesmo tendo que acordar cedo. Ele nunca acorda antes das 9h da manhã”, lembra Proner.
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Carta
Cerca de cinco meses depois do encontro dos brasileiros no Vaticano, Gilberto Carvalho foi contactado por Marco Aurélio Santana Ribeiro, atual chefe do Gabinete Pessoal do Presidente da República e então assessor de Lula, que continuava preso em Curitiba.
Ex-seminarista, ex-ministro de Dilma Rousseff (PT) e um dos petistas mais próximos de Lula, Carvalho conta que Ribeiro trazia um recado do ex-presidente: ele queria enviar uma carta ao papa.
E, para isso, Lula queria a ajuda de Carvalho, que é próximo de nomes importantes do clero brasileiro e no Vaticano.
Carvalho conta que, ao receber a missão, decidiu que o ideal seria não enviar a carta pelos trâmites normais da burocracia do Vaticano. Ele temia que, pelo fato de Lula estar preso, a carta pudesse nunca chegar ao papa.
Como já tinha uma viagem marcada a Roma, ele decidiu acionar um amigo, que, por sua vez, conhecia um amigo do papa.
A ideia era encontrar a pessoa próxima ao pontífice e entregar a missiva em mãos para, assim, tentar garantir que ela chegasse ao seu destino.
“Era um amigo íntimo do papa, alguém que era sempre recebido por ele. Ele me mandou o endereço de uma livraria em Roma e eu fui. Tomamos um cafezinho e eu entreguei a carta a ele, com o pedido que ela chegasse diretamente o papa”, diz Carvalho.
O petista saiu da livraria sem ter ideia de se um dia a carta seria mesmo lida pelo pontífice.
Vazamento
“Voltei ao Brasil sem saber o que aconteceria. Semanas depois, recebi uma ligação da Nunciatura Apostólica dizendo que eles tinham documentos para me entregar, documentos confidenciais”, diz.
A Nunciatura Apóstólica é a principal representante diplomática do Estado do Vaticano em um país, funcionando com uma espécie embaixada.
Carvalho, que atualmente é secretário de Economia Popular e Solidária no Ministério do Trabalho, foi à sede da Nunciatura, em Brasília, para buscar os tais documentos. Recebeu, então, a resposta do papa à carta de Lula.
“Lá eu encontrei o núncio [embaixador do Vaticano no Brasil] e ele me disse que tinha uma carta do Santo Padre ao presidente Lula, mas que tinha uma recomendação de manter absoluto sigilo. Eu compreendi o sigilo, porque, como o Vaticano também é um Estado, isso poderia causar alguma dificuldade com o governo Bolsonaro”.
Com a resposta do papa em mãos, Carvalho organizou uma maneira de enviar ela em segurança a Lula, que estava preso em Curitiba.
“Mas já comecei a pensar em como poderíamos vazar aquela carta”, diz Carvalho, usando o jargão político para quando informações secretas são divulgadas para o público.
O problema é que divulgar o conteúdo da carta sem autorização do papa poderia deixar o pontífice contrariado. E mais, estremecer as relações diplomáticas entre o Vaticano e o então governo Jair Bolsonaro.
Era preciso autorização do papa para divulgar a carta.
Foi aí que, mais uma vez, foi acionado Juan Grabois, o advogado argentino próximo ao papa. O petista queria um sinal verde do Vaticano antes de tornar público o conteúdo da mensagem.
“O Grabois ligou dias depois afirmando que o papa disse que a carta poderia ser aberta, que não tinha problema nenhum. Mas que não era para criar problemas para a Nunciatura no Brasil.”
Surgiu então a ideia de vazar a carta pela Europa. O conteúdo dela foi então primeiramente divulgado entre movimentos sociais e círculos acadêmicos europeus, para depois ser liberado para a imprensa no Brasil.
Lula deixaria a prisão em novembro daquele ano. Em fevereiro de 2020, ele faria sua primeira viagem internacional após ser solto, ainda como ex-presidente. Seu destino foi o Vaticano, onde se encontrou com o papa Francisco.
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