Em novembro de 2024, a cantora e compositora paraibana Cátia de França era pura ansiedade ao embarcar em um voo para os Estados Unidos. Seu álbum, No rastro de Catarina, lançado naquele mesmo ano, fora indicado ao Prêmio de Melhor Álbum de Rock ou Música Alternativa em Língua Portuguesa no Grammy Latino. A cerimônia de premiação que aconteceria em Miami no dia 14 daquele mês e ela seguia para lá.
Ao passar pela fiscalização da alfândega estadunidense, um oficial queria saber o que a senhora de corpo franzino e cabeleira branca como algodão iria fazer nos Estados Unidos. Sem fluência em inglês, Cátia contou com a ajuda de sua produção para explicar que era uma artista e, mais que isso, fora indicada a um dos prêmios mais respeitados da indústria da música. O policial ficou impressionado.
“Ele já olhou para mim como quem diz: por que ela ainda não está quieta, numa cadeirinha, se lembrando do passado? Ele vibrou! Imagina um policial americano que é tido como ‘brutamontes’! E ali, o rosto dele acendeu uma luz. Isso já me fez um bem medonho”, relembrou.
A surpresa do policial talvez tenha se devido à aparência de Cátia, uma senhora de 78 anos, de magreza delicada e cabelos brancos ostentados com orgulho. A suposição de fragilidade sobre ela não poderia estar mais equivocada. Multi-instrumentista com mais de meio século de música, Cátia de França, que no documento é Catarina Maria de França Carneiro, é uma força da natureza com uma mente inquieta e pulsão criativa irrefreável.
A inventividade e a sensibilidade que embasaram seu álbum de estreia, o aclamado “20 palavras ao redor do sol”, lançado em 1979, ainda seguem firmes com ela. “Componho até com bula de remédio”, diz a paraibana. Após viver uma espécie de renascimento artístico ao ser descoberta pelo público jovem, ela tem hoje uma agenda apertada com apresentações em todo o Brasil.
Cátia se apresentou na última quinta-feira (24), no Festival Agô em Brasília. E parte do público que a vê nos palcos atualmente não sabe quantas voltas ao redor do sol esta mulher negra nordestina teve que dar para viver hoje sob os aplausos que reconhecem seu talento.
Berço musical
Cátia ainda era Catarina quando a mãe, a professora Adélia Maria de França, reconhecida como a primeira educadora negra da Paraíba, lhe apresentou aos livros. Seus preferidos eram os de José Lins do Rêgo, Graciliano Ramos e João Cabral de Melo Neto, que tinham trechos de suas obras musicados pela menina.
“Eu nasci num berço musical. Meu pai adorava ‘sofrência’, que naquela época não tinha esse nome, era tango. E eu toco sanfona por causa disso. E mamãe era muito musical, o rádio lá em casa era ligado full time”, explica. A paraibana teve uma formação musical erudita na juventude, até construir sua própria poesia, que bebe da cultura popular, da tradição regional e também do rock e sua psicodelia. Sua obra ajudou a formatar o que se entende por música do Nordeste, que nada mais é do que música popular brasileira.
Na vida adulta, ela se mudou para o Rio de Janeiro. Cátia – que ganhou esse apelido da mãe – acompanhou o movimento de muitos cantores e compositores nordestinos que migraram para o Sul Maravilha para impulsionarem sua arte. O ano era 1972. Cantou em barzinhos e trabalhou como datilógrafa até encontrar sua “fada madrinha”, a conterrânea Elba Ramalho. Já consagrada, Elba passou a indicá-la para trabalhos na música e no teatro alternativo.
À medida que ia ao encontro de sua arte, Cátia lidava com os estigmas e preconceitos de ser uma mulher negra, lésbica e migrante nordestina naqueles anos de chumbo da ditadura militar no Brasil. “Era uma implicação, a polícia, né? Queriam ver se pegava a gente com alguma coisa, com erva, sem documento. O problema maior era a gente ser nordestino.”
Disco de estreia
Nessa época, Cátia formou uma turma com os conterrâneos Vital Farias, Pedro Osmar e Zé Ramalho. Esse último, impressionado com suas composições, produziu 20 palavras ao redor do sol, o primeiro álbum de Cátia.
O disco conta com a participação de músicos do quilate de Dominguinhos, Sivuca, Lucinha Turnbull, Chico Batera, Bezerra da Silva, Lulu Santos, além de Amelinha e Elba Ramalho nos vocais. O 20 palavras ao redor do sol seria, anos depois, considerado um clássico cult e que tem seus exemplares originais em vinil vendidos a preços altíssimos. O álbum traz canções como Kukuaia, Coito das Araras e Quem vai quem vem, atualmente cantadas em uníssono nos shows por gente com um terço de sua idade.
Tudo indicava que a estreia promissora de Cátia a colocaria no mesmo patamar de Elba Ramalho ou Amelinha, artistas que já desfrutavam de reconhecimento e popularidade à época. Isso, porém, não aconteceu. Mesmo celebrada como uma instrumentista brilhante e com a boa repercussão do primeiro disco, Cátia não ganhou tanto destaque na indústria musical. Além da ausência de um empresário que investisse em sua carreira, sentiu que ser uma mulher negra também pesou.
“Era fácil se você fosse loira, nórdica, uma Vera Fischer ou Xuxa. Eu não era, entendeu? Eu não tinha o atributo físico. A minha história era outra”. Chegou a lançar Estilhaços no ano seguinte, 1980, mas sem tanto sucesso. Viu-se obrigada a empunhar o violão e voltar a tocar na noite. “Eu tinha aluguel e comida para pagar, voltei a tocar nos barzinhos em Pernambuco”. E assim se deu.
Renascimento
Mesmo longe dos holofotes, nunca parou de compor. “Eu disse, se eu paro eu caio. Eu componho pra me manter viva”, afirma. A artista ampliou sua discografia e, graças à internet, viu nos últimos anos muita gente redescobrir seus álbuns. Artistas da nova geração da música brasileira como Josyara, Juliana Linhares, Martins e Chico Chico são fãs declarados de Cátia, que costuma dividir o palco com seus jovens admiradores.
Para o músico, produtor e professor Daniel Pitanga, mestre em Música pela Universidade de Brasília (UnB), Cátia faz parte de uma geração de artistas que contribuíram diretamente para a construção de uma sonoridade da música brasileira.
“A obra da Cátia é imensa e vai muito além das suas composições, que por sinal, são muito especiais e representam a sua forma de existir e interpretar o mundo. Como compositora, cantora e multi-instrumentista, acredito que essa artista atemporal contribuiu, e muito, com o que hoje entendemos como música brasileira, e, sobretudo, ultrapassa essa rígida barreira do que é compreendido como música ‘regional’”.
Pitanga também afirma que se mais pessoas tivessem tido acesso ao trabalho de Catia, é provável que ela fosse mais reverenciada dentro do nosso panteão de grandes artistas. “Mas para pensar de uma forma mais positiva, acho que é importante ressaltar que a Cátia, ainda que não fosse a artista principal, esteve presente e colaborou nas gravações de discos memoráveis do acervo da MPB e mais, mesmo que tardiamente, ela hoje pode desfrutar, ainda em vida, de um momento de visibilidade e agenda cheia, realizando shows e turnês”.
Apesar de não ter conquistado o Grammy Latino, o álbum No rastro de Catarina foi aclamado pela crítica e integrou as listas dos melhores lançamentos de 2024. A cerimônia do Grammy também marcou um encontro entre a artista e Lulu Santos, mais de quatro décadas depois da colaboração do então jovem guitarrista em 20 Palavras ao Redor do Sol.
Sobre os anos à sombra, Cátia não guarda ressentimentos. “Eu vejo tudo que eu vivi como uma ressurreição, porque naquele tempo você, para tocar, tinha que dar o tal do jabá. A plateia, cada vez que eu canto em qualquer parte do Brasil, predomina de jovens que cantam comigo. É um reconhecimento que chega num momento certo, é uma emoção que não existia em 1979”.
Prova do sucesso é que os ingressos que esgotaram mais rapidamente para o Festival Agô, em Brasília, foram para a noite de sua apresentação. Antes do show na capital federal, junto com os músicos Gean Ramos Pankararu e Cristiano Oliveira, a artista beijou seu violão, um afago no inseparável companheiro de estrada.
Em uma das canções de No rastro de Catarina, Cátia de França canta: “Agora sei porque o velho sozinho fala / Sua alma trabalha / Sua experiência não cala/ Agora sei por que o cabelo branco é condecoração/ Sabedoria em profusão”. Para alegria dos amantes da boa música e para a surpresa dos agentes da alfândega, a fênix paraibana ainda é uma potência criativa com muito a compartilhar.