Há 80 anos, São Januário foi sede de desfile com título da Portela, crime que chocou o Rio e virou letra de Paulinho da Viola; entenda


Estádio do Vasco foi palco de três desfiles, em 1936, 1943 e 1945, quando uma briga generalizada entre escolas terminou com a morte do sambista Matinada. Há 80 anos, São Januário foi sede de desfile com título da Portela e crime que chocou o Rio
Reprodução site oficial do Vasco da Gama / Centro de Memória CRVG
Há 80 anos, em 1945, o Rio de Janeiro celebrava um carnaval totalmente diferente de todos os outros de sua história. Em meio à Segunda Guerra Mundial, o gramado de São Januário trocou os craques por passistas, foliões e alegorias e viu a Portela ser coroada pentacampeã do carnaval.
Além da festa popular no campo do Vasco da Gama, uma tragédia manchou aquele carnaval. Entre confetes e serpentinas, o sambista Matinada foi assassinado com uma facada no meio do gramado.
O crime ecoaria na cidade e seria eternizado na música de Paulinho da Viola e Aldir Blanc, ‘Botafogo, Chão De Estrelas’. Um evento totalmente atípico, que misturou glória e violência, e ficou marcado na memória do carnaval do Rio.
Para o jornalista, escritor e pesquisador da cultura popular Fábio Fabato, aquele carnaval apresentou elementos de uma típica crônica carioca, misturando paixões do povo como o carnaval e o futebol, com uma tragédia que chocou a cidade.
“Matinada foi assassinado no campo do Vasco, durante o carnaval. Isso gerou até uma crônica da Rachel de Queiroz (…) Esse episódio ficou maior que o carnaval”, analisa.
“Foi um fato que entrou para a crônica de costumes da cidade. Uma cidade forjada em crimes, carnaval e futebol e você tem ali todos esses elementos que apontam para uma crônica carioca. Tudo nesse carnaval tem essa alma que o Rio de janeiro carrega até hoje. É um crime que vence o próprio carnaval. As pessoas falam muito mais disso do que do título da Portela”, comentou Fábio Fabato.
*Leia mais sobre o crime no fim da reportagem.
Desfiles no estádio
O Rio de Janeiro de 1945 vivia um período único em sua história. Capital do país na época, o Rio sofria os efeitos da entrada do Brasil na 2ª Guerra Mundial, desde 1942, ao lado dos países aliados contra a Alemanha nazista.
Entre os desafios impostos pela guerra que acontecia em grande parte na Europa, estavam medidas de precaução contra bombardeios e o desligamento parcial ou total da rede de energia elétrica da cidade.
Diante desse cenário, o clima não era muito propício para a realização do carnaval de 1945. A imprensa da época foi contra e fez pressão para que o poder público não assumisse a festa nas mesmas proporções de outros anos.
Além do contexto da guerra, outro fator foi determinante para que os desfiles das escolas de samba acontecessem em São Januário naquele ano: a destruição da Praça Onze.
Praça Onze de Junho, no Centro do Rio, em 1922
Augusto Malta/Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles
No local, funcionava o Centro Religioso da Tia Ciata, um sobrado frequentado por artistas e considerado o berço do samba no Rio de Janeiro. A demolição da praça causou revolta entre os sambistas.
“A escolha de São Januário se dá porque era o grande palco esportivo e político da cidade. Ainda não tinha o Maracanã. (…) Em 1945, as escolas de samba ainda eram tratadas como uma coisa menor e por isso os desfiles foram deslocados pra lá, muito pelo contexto da guerra, mas também pela destruição da Praça Onze”, explicou Fabato.
Na década de 1940, as escolas de samba ainda lutavam por legitimidade e reconhecimento na sociedade, tanto é que os desfiles ainda não eram os principais eventos do carnaval da cidade.
Os ranchos – grupos organizados que desfilavam apresentações com alegorias e orquestras de sopros – e as grandes sociedades do carnaval, que já desfilavam na Avenida Rio Branco, não tiveram autorização do governo para desfilar em 1945.
São Januário em 1927
Reprodução site oficial do Vasco da Gama / Centro de Memória CRVG
“Nessa época (1945), eram muitas ligas diferentes. A coisa fica um pouco mais organizada a partir da metade da década de 1950. (…) Em 1945, era um momento de romantismo, de escolas modestas e poucos recursos”, conta o pesquisador.
“Aquele foi um evento considerado pequeno na cidade. (…) As grandes sociedades e os desfiles de rancho ainda eram os maiores eventos do carnaval na época”, reforçou Fabato.
Nesse cenário, São Januário foi escolhido. O estádio era o único grande local do Rio de Janeiro e já havia sido utilizado para festejos cívicos. Em 1943, inclusive, já havia sido palco de um desfile não-oficial das escolas, organizado pela então primeira-dama do Brasil, Darcy Vargas, esposa de Getúlio Vargas.
Portela segue sua hegemonia
Com o Estádio de São Januário definido para a realização dos desfiles, a Liga de Defesa Nacional (LDN) e a União Nacional dos Estudantes (UNE) assumiram a organização do evento.
Quatro escolas conseguiram financiar seus desfiles e confirmaram presença na competição no campo do Vasco. Os participantes eram:
Portela;
Mangueira;
Depois Eu Digo (do Morro do Salgueiro);
e Cada Ano Sai Melhor (do Morro do São Carlos).
A Portela era a potência da época e acumulava troféus desde 1941, com uma sequência de títulos que se estendeu até 1947.
A Mangueira também já era uma grande escola, tendo conquistado um tricampeonato, entre 1932 e 1934, e o título de 1940. Contudo, a Verde o Rosa acumulou três vice-campeonatos seguidos, em 1943, 1944 e 1945.
Conhecida como o “Expresso da Vitória do samba”, a Portela conquistou o título naquele ano com o samba “Brasil Glorioso”, de Ventura.
É bom lembrar que naquele ano, todas as escolas tiveram que fazer seus enredos com temas patrióticos, refletindo o clima nacionalista impulsionado pela participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial.
Versões de um crime bárbaro
“Um crime que entrou para a história do Rio”. Assim o pesquisador define a morte do sambista Matinada durante os desfiles do carnaval de 1945.
Como o carnaval daquele ano não contou com a simpatia da imprensa, os desfiles não foram registrados. Por isso também é muito difícil buscar informações sobre o que de fato aconteceu naquele dia.
Se os desfiles não despertavam tanta atenção, a morte de um sambista no meio do campo de São Januário ganhou as páginas de todos os jornais que cobriam o noticiário policial da época.
“O crime entrou para a história jornalística do Rio. Por mais que a gente tenha pouco registro, sabemos que o assassinato foi dentro de São Januário. A história tem muita memória oral, mas pouco registro jornalístico”, conta Fabato.
Uma das versões, segundo Fábio Fabato, é que uma briga generalizada envolvendo os sambistas das escolas Depois Eu Digo e Cada Ano Sai Melhor terminou com a morte de Matinada, um sambista ligado à escola com sede no Morro do Salgueiro.
A briga de fato aconteceu e foi uma batalha entre muitas pessoas. A dúvida, segundo Fabato, é se Matinada morreu por conta da briga ou se a morte dele provocou o embate generalizado.
“O que aconteceu de fato foi uma porrada generalizada entre a Depois Eu Digo, que era uma escola do Morro do Salgueiro, e a Cada Ano Sai Melhor, do morro do São Carlos”, lembrou o pesquisador.
O Jornal do Brasil, em sua edição de 6 de fevereiro de 1945, contou que, além de Matinada, houve ainda 14 feridos no interior de São Januário. A reportagem afirma ainda que uma série de prisões foram feitas pela polícia.
Quando a situação se acalmou, de acordo com a reportagem, José de Oliveira, o Matinada, de 20 anos, foi identificado. Morador do Morro do Salgueiro, Matinada era integrante da escola de samba Depois Eu Digo. Segundo a matéria, a polícia não sabia qual a causa do conflito, apesar de várias versões.
Uma cantada fatal
Ninguém sabe ao certo o que aconteceu, mas uma das versões para o início da briga diz que uma cantada de um integrante da Depois Eu Digo para uma porta bandeira da Cada Ano Sai Melhor foi o sinal de largada para a confusão.
Essa mesma versão tem dois possíveis detalhes que podem fazer toda a diferença para o desfecho do caso. De acordo com Fabato, uma das versões diz que um homem identificado como Levi foi o responsável pela cantada e que, ao ser confrontado, mentiu seu nome e teria dito se chamar Matinada.
“Uma das versões envolve uma briga por cantada. Um mestre sala chamado Levi deu uma cantada numa porta bandeira do São Carlos. Mas ele não foi o alvo da confusão porque ele teria dado o próprio nome errado. Ele disse que se chamava Matinada. E quando alguém perguntou: ‘Quem é Matinada?’. Essa pessoa foi lá e deu uma facada no Matinada verdadeiro”.
“Outra versão diz que houve uma confusão generalizada, o que era comum na época, e no meio da confusão, alguém apunhalou o Matinada”, contou Fabato.
Acusado provou inocência
Recorte de jornal da época mostra Matinada (a direita).
Reprodução
Como era de se esperar o crime chamou atenção e precisou ser investigado. No primeiro momento, as autoridades acusaram e prenderam o mestre-sala Avelino dos Santos, conhecido como Bicho Novo.
Contudo, Bicho Novo acabou liberado depois que a polícia verificou que ele nem mesmo estava presente em São Januário na hora da confusão. Sebastião Bezerra Resende, o Dedé, também chegou a ser detido como suspeito pelo crime.
A escritora Rachel de Queiroz publicou na época uma crônica que lembrava da morte de Matinada e fazia referência a uma possível lenda.
“Abro agora um parêntese para cantar a glória de Matinada, mestre de canto de uma escola de samba que morreu aqui no Rio, apunhalado na concentração do estádio do Vasco. Lá na Ilha já corre uma lenda lindíssima: que Matinada morreu mas deixou doze no chão, com o risco de sua navalha” escreveu Rachel.
Inspiração para Paulinho da Viola
Portelense e vascaíno, Paulinho da Viola foi impactado pelo carnaval de 1945 de forma contundente, apesar de seus 3 anos de idade na época.
Pesquisadores contam que o sambista que hoje tem 83 anos estava em São Januário naquele dia e viu e ouviu do pai relatos da grande confusão que terminou com a morte de Matinada.
“O que de fato aconteceu é que o Paulinho da Viola, ainda bebê, estaria em São Januário nesse momento e soube pelo pai da confusão. A história conta que isso teria marcado ele e anos depois, junto com Aldir Blanc, fez o samba”.
Trinta e três anos depois, em 1978, Paulinho da Viola e Aldir Blanc escreveram juntos a letra de ‘Botafogo, Chão de Estrelas’, uma poesia repleta de metáforas, sobre o bairro de Botafogo, na Zona Sul. A música fala de um lugar de contrastes entre beleza e decadência, sonhos e realidade.
Paulinho da Viola em foto de novembro de 1978
Acervo Estadão Conteúdo
O trecho da obra que cita a morte durante os desfiles de 1945 diz: “Morreu assassinado o Matinada / Nas confusões que vestem fevereiro”.
Paulinho e Aldir fazem uma crítica social ao sugerir que as “confusões” (violência, desigualdade, tensões) são trajes temporários que se repetem todo ano.
Sobre Matinada, sua morte violenta simboliza a violência urbana e o descaso com vidas periféricas, algo que Aldir Blanc frequentemente denunciava em suas letras.
Matinada é na música uma vítima simbólica de um sistema que marginaliza e mata, enquanto a sociedade se distrai com as roupas festivas de fevereiro.
Veja a letra completa de ‘Botafogo, Chão de Estrelas’:
Quando
O paraíso das cabrochas
Do seu Oswaldo Tintureiro
Desfilou e abriu o mar
O mar
Que também é quizumbeiro
Morreu assassinado o Matinada
Nas confusões que vestem fevereiro
Botafogo saiu pelo sem rival
Brincou com os gaviões
E do funil eu era fã
Juntos, mar e fantasia
Ganhando prêmios do Correio da Manhã
Mauro Duarte
Engenho e arte
Como disse o cantor dos navegantes
Vindo à vela da rua Marquês de Abrantes
Com Pica-Fumo, Ivo e Zorba Devagar
Miúdo, Eli Campos e Jair Cubano
Alcides, no cantinho da fofoca nacional
Figuras nobres do imaginário
Do país do carnaval
Figuras nobres do imaginário
Do país do carnaval
Depois, com Niltinho Tristeza
O samba se uniu para brilhar
Ganhou paradas e foi aquela beleza
Tanto fazia ser de Botafogo ou do Humaitá
Pra quem chegar
Pra quem chegar agora
E ouvir a minha história
Meu samba tem
A honra de anunciar
Sou a estrela solitária
Botando fogo
No crepom azul do mar
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