Irmãos desaparecidos na ditadura militar: família do interior de SP aguarda correção das certidões de óbito


Irmãos Maria Lúcia, Jaime e Lúcio Petit, que moravam em Bauru (SP), partiram para a luta armada contra os militares na Guerrilha do Araguaia. Somente o corpo de Maria Lúcia foi encontrado e o filho mais novo da família aguarda ainda a retificação dos documentos, conforme a resolução de 2024 do CNJ. Irmãos Petit, da região de Bauru, estão entre os 200 mortos e desaparecidos da Ditadura Militar que terão certidões de óbitos corrigidas
Memorial da Resistência/ Arquivo
No começo da década de 1970, os três irmãos Lúcio Petit da Silva, de 27 anos, Jaime Petit da Silva, de 25, e Maria Lúcia Petit da Silva, de 20, saíram de Bauru (SP) para o sudeste do Pará, na região do Bico do Papagaio, entre Pará, Maranhão e Tocantins para participar da luta armada contra os militares na região, que ficou conhecida como Guerrilha do Araguaia.
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A ossada de Maria Lúcia foi encontrada e sepultada em 1996 em Bauru (SP), enquanto seus irmãos nunca foram encontrados.
Em entrevista ao g1, Clóvis Petit da Silva, de 68 anos e que é o irmão mais novo da família, contou que ainda aguarda o contato do cartório responsável para envio do questionário e seguir com o andamento da correção das certidões de óbito de seus irmãos.
Professora de Agudos vítima da ditadura terá certidão de óbito corrigida
Os três estão entre as mais de 200 vítimas que receberão a certidão de óbito corrigida. Em janeiro, os cartórios brasileiros começaram a alterar as causas dos óbitos de pessoas desaparecidas ou mortas durante a ditadura militar no Brasil.
A certidão de Rubens Paiva é uma das que já foram corrigidas. Paiva foi engenheiro e ex-deputado federal que desapareceu e foi morto pela ditadura militar em 1971. Na primeira versão da certidão, emitida em 1996, após sua esposa Eunice Paiva lutar por mais de 20 anos para conseguir o documento, constava apenas como desaparecido.
A história da família é contada no longa-metragem “Ainda estou aqui”, indicado a três categorias do Oscar 2025. A premiação será no domingo (2) e será transmitida pela Rede Globo.
As ações de correção atendem a decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), publicada em 13 de dezembro de 2024.
Professora de Agudos está na lista de correção das certidões de óbito da Ditadura
Luta contra a ditadura
Clóvis contou que nos últimos 40 anos ele e sua irmã Laura, a filha do meio, lutaram ativamente na Justiça pelos direitos das pessoas mortas e desaparecidas no período da ditadura militar. Ambos já atuaram em conjunto com a Comissão da Verdade de São Paulo.
Ele ainda destaca que a história de sua família em prol da democracia teve início ainda no período da ditadura.
“A luta que travamos, como também a de muitos familiares de mortos e desaparecidos políticos, advém desde antes do fim da ditadura militar. Lutamos por anistia política em plena vigência da ditadura”, explica.
Clóvis se formou em advocacia e enfatiza que mesmo com os avanços no campo da justiça como por exemplo, as correções das certidões de óbitos, o Brasil ainda precisa percorrer um longo caminho. De acordo com ele, muitos dos militares atuantes na ditadura já faleceram, e sem punição.
O Brasil já foi condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos pelos crimes ocorridos na ditadura diversas vezes. Por mais de 30 anos o Estado Brasileiro negou-se a iniciar uma investigação criminal para esclarecer os fatos e determinar as responsabilidades sobre a Guerrilha do Araguaia, amparando-se na Lei da Anistia, de 1979.
Em 2010, o Brasil foi condenado por graves abusos ocorridos durante a Ditadura Militar e pela Lei da Anistia por não possuir efeitos jurídicos e impedir a investigação.
O caso do jornalista Vladimir Herzog também foi condenado pela Corte em 2018. O tribunal alega que o Estado Brasileiro foi responsável pela falta de investigação, julgamento e sanção dos responsáveis pela tortura e assassinato de Herzog, e também por violar o direito de conhecer a verdade por parte dos familiares.
Certidões de óbito dos irmãos Petit, da região de Bauru, devem ser corrigidas de acordo com a resolução do CNJ
Comissão da Verdade/ Arquivo
Guerrilha do Araguaia
A Guerrilha teve início no final da década de 1960, e o objetivo da ação era iniciar uma revolução no campo, ao exemplo do que aconteceu na China. Em 1972, o Exército Brasileiro iniciou as operações a fim de combater a luta armada.
Na época, Clóvis tinha apenas 14 anos e relembra que os irmãos partiram para a guerrilha sem deixar notícias e informações do local onde estavam indo. O sigilo era necessário por questões de segurança.
Maria Lúcia, era a quarta filha de Julieta Petit da Silva, e nasceu em Agudos (SP). Antes de integrar a Guerrilha, ela foi professora e representante da luta contra a exclusão de mulheres na participação política.
Maria morreu em 1972 durante o combate. Segundo dados do Relatório Arroyo, disponíveis no Memorial da Resistência de São Paulo, em junho daquele ano, Maria Lúcia e dois guerrilheiros procuravam por João Coioió, membro que já tinha auxiliado o movimento. Na ocasião, os três guerrilheiros foram surpreendidos por uma emboscada, na qual Maria Lúcia foi atingida por um tiro e morreu.
Localização da ossada
Em 1991, após a divulgação do Relatório, a ossada dela foi localizada e encaminhada para a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), porém, apenas em 1996, foi reconhecida, velada e sepultada no Cemitério Jardim do Ypê em Bauru (SP).
O reconhecimento em 1996 foi possível após a publicação de uma reportagem no jornal O Globo com fotos da Guerrilha. Em uma das fotos estava o corpo de Maria Lúcia, a partir desta reportagem a família foi até o campus da Unicamp lutar pelo reconhecimento do corpo.
Irmãos Petit
Lúcio, nasceu em Piratininga (SP), formou-se em engenharia e era o filho mais velho. De acordo com os documentos, ele ficou conhecido pelo nome de guerra “Beto”. Lúcio foi um dos últimos guerrilheiros a ser preso, interrogado e morto entre o final de 1973 e meados de 1974.
Já o segundo filho da família Petit, Jaime, nasceu em Iacanga (SP), estudava engenharia e era parte do movimento estudantil universitário. Ao participar do Congresso da UNE (União Nacional dos Estudantes) ele foi preso e posteriormente liberado, passando a viver de forma clandestina.
Ele foi o último dos irmãos a ir para a Guerrilha do Araguaia, integrando o Destacamento B das forças. Pelas informações, o último registro de Jaime ocorreu entre os dias 28 e 29 de novembro de 1973.
Clóvis lembra que morava em Bauru (SP) com sua mãe e que foram anos sem qualquer notícia e contato com os irmãos. A Guerrilha terminou em 1974 e foram informados disso apenas três anos depois.
“Durante muitos anos minha mãe ainda tinha esperanças de reencontrar meus irmãos com vida, porque ela foi poupada de saber detalhes da crueldade de torturas que seus filhos sofreram e a forma como morreram.”
A mãe de Clóvis, Julieta, cultivou esperanças de reencontrar seus filhos com vida, até o momento em que o corpo de Maria Lúcia foi encontrado. Ela faleceu em 2007 sem ter a oportunidade de enterrar seus filhos Jaime e Lúcio, e até hoje, os irmãos não tiveram os corpos localizados.
“Depois que os restos mortais de Maria Lúcia foram encontrados, minha mãe já não esperava mais, só queria que fosse encontrado os restos mortais do Jaime e do Lúcio.”
Sucesso de “Ainda estou aqui”
Hoje morando em Presidente Prudente, Clóvis conta que assistiu o longa “Ainda estou aqui”, e ressaltou a importância de mostrar a brutalidade do período.
Para ele, o destaque que o filme recebeu mundialmente é uma forma de retomar a história do período e mantê-la entre os mais jovens. “O filme teve um impacto bom, muitos jovens não tem ideia do que o Brasil passou durante o período da ditadura”, afirma.
‘Ainda Estou Aqui’ disputa Oscar de melhor filme internacional com produções do Irã, da Dinamarca, da Letônia e da França
Jornal Nacional/ Reprodução
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